O espelho tem duas faces
Por Luana Ferreira
A história começa assim: ela se sentou em frente ao marido e disse que a partir daquele momento, ele saberia quem ela era. Soltou o cabelo, tirou a maquiagem e a roupa e mostrou tudo aquilo que ela julgava ser motivo de constrangimento. As falhas no cabelo, os fios brancos, as rugas na testa e nos olhos, as manchas de sol, as cicatrizes do tempo, as celulites e estrias, a flacidez, as dobras da barriga. Não é que o marido não conhecia tudo isso, mas ela precisava se libertar da vergonha da qual era tomada toda vez que o marido a olhava ou tocava.
E eu garanto: toda mulher é assim. Toda mulher deprecia o seu corpo sistematicamente. A minha geração foi julgada inúmeras vezes pelo seu peso, pelo cabelo, pelas unhas, pela roupa. Quando chegávamos em festas as pessoas nos olhavam de cima a baixo e nos avaliavam, como num julgamento mesmo. A famosa autora Brené Brown fala que as pessoas enxergam primeiramente como está a apresentação social do outro, não importando a complexidade que um ser humano traz. Diz também que o principal gatilho para a vergonha, quando se trata de mulheres, está relacionado à aparência. Esse comportamento, claro, não é por maldade, é pela cultura - o que pra mim é muito pior, pois não se trata de uma pessoa ou outra ser assim, somos todos nós. Mas, podemos ser avaliadas pelo tempo-resultado que nos dedicamos à estética?
A objetificação da mulher ao longo dos séculos - pela dominância do patriarcado - culminou numa geração preocupadíssima com a estética. A ideia de que o homem é o gênero dominante lhe deu, ao longo dos tempos, poder para ditar regras, comportamentos e definir o papel da mulher, devendo esta ser submissa. Frases como “essa saia está muito curta”, “não gosto de cabelo curto”, “você engordou”, “você está muito magra”, “esse batom é muito forte”, são mais comuns do que imaginamos. É claro que desde as militâncias do feminismo negro, passando pelas sufragistas e chegando às lutas dos dias de hoje, vemos algumas mudanças no ambiente corporativo, nas políticas públicas e na esfera privada, por exemplo. Mas, a expectativa da mulher com relação à estética, nem tanto, ela pouco muda.
Enquanto a mulher luta e escancara o desejo de ir para o mercado de trabalho, de ter um companheiro pró feminismo, de ver o pai cuidar dos filhos, de explicar aos homens seu lugar de privilégio, ela esconde as “imperfeições” estéticas com cinta, sutiãs de todas os moldes, vestidos sufocantes e camadas e camadas de maquiagem. E o mercado agradece, já que ganha consumidoras ávidas por produtos milagrosos e, sabendo que elas investem pesado, criou o que foi conhecido como Taxa Rosa. Os produtos destinados às mulheres são, em média, 10% mais caros. Isso significa que se você comprar um xampu para uso feminino ele será mais caro que o modelo masculino.
Outro exemplo de como a estética é importante para as mulheres é o crescimento do mercado da beleza. Para começar, o Brasil é o país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo, é o quarto maior mercado de beleza e registrou crescimento mesmo no ano da maior crise sanitária desta geração.
Então, para cultivarmos novos tempos, em que as mulheres podem se despir e se enxergar de corpo e alma, sem julgamentos, sem culpa e sem dor, deixo perguntas retóricas para sua redescoberta. Por que a estética é tão importante? Em que a estética te acrescenta? Você é mais feliz quando se julga menos? Consegue se olhar no espelho com carinho? Enxerga a naturalidade do seu corpo - quando comparado ao corpo vendido pela mídia? Se o outro não te julgasse pela aparência você se importaria menos com ela? Você consegue não julgar o outro?
Era 1999, eu assistia a um famoso seriado na TV a cabo. A protagonista, apaixonada pelo amigo, chega a uma festa e dá de cara com ele. Logo, ele percebe seu batom e diz: “nunca te vi tão bonita”. Era a primeira vez que ela usava a maquiagem. Ela pega um lenço, limpa o vermelho da boca e diz: “mas, isso é só batom!!”
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