O texto abaixo faz parte do livro Mulheres pela Água, lançado em novembro de 2021, pela REBOB - Rede Brasil de Bacias Hidrográficas. O projeto reuniu 51 mulheres que contaram histórias sobre sua relação com o água. Abaixo, o texto enviado por nós.
O livro está disponível, na íntegra, no endereço: https://www.rebob.org.br/mpa.
Minha amiga e eu
Pare. Por um minuto, pare. Olhe ao seu redor, perceba o que te cerca e responda: o
quanto existe de água neste espaço em que você está? Sabe dizer quanta água foi
necessária para te trazer ao aqui e agora, ao que os seus olhos veem?
Tudo vem da água. O que somos, os objetos que acumulamos, os bens que
compramos, tudo, sem exceção, precisou (ou precisa) de água. Ao longo dos meus
quarenta anos, sempre fui privilegiada pelo acesso à água e, pelos cálculos, isso
significa que eu tenha consumido mais de 2 milhões de litros em toda a minha vida.
Já parou para pensar na sua pegada hídrica? É essa a terminologia que apresenta o
cálculo de quantos litros de água são necessários para se produzir alguma coisa, para
se viver, etc. Quando me peguei pensando nessa minha relação, lembrei de onde vim.
Nasci do encontro entre a Baía de Guanabara e o Rio Araguaia, meus pais nasceram
em diferentes estados, se encontraram nas montanhas de Minas e por aqui se
instalaram. O valor que dou aos recursos naturais veio de berço.
Entretanto, meu acesso à água pode ser entendido como uma realidade paralela, já
que sempre tive o recurso com abundância, enquanto quase 20% da população
brasileira não têm acesso à água com tanta facilidade. Apresento a você minha amiga,
moradora de Caldeirão Grande do Piauí, brasileira de 40 anos. Somos parecidas não
somente na idade, mas na constituição familiar e nas obrigações com o trabalho. As
nossas diferenças gritam quando comparamos a saúde, o bem estar, os afazeres do
dia a dia e a simplicidade.
Enquanto ambas acordamos às 7 horas, eu abro a torneira para escovar os dentes e
minha amiga observa se a água dormida num balde está com algum bicho para, aí sim,
escovar os dentes.
Enquanto faço meu desjejum com água, minha amiga ferve o restante do balde -
espera esfriar e bebe.
Enquanto tomo banho, minha amiga pensa que é melhor somente lavar o rosto para
deixar alguma água para cozinhar o almoço.
Enquanto escolho verduras e frutas no supermercado, ela se depara com poucas
opções, consequência de uma terrível seca que prejudicou a agricultura local.
O fato de a água não chegar até minha amiga tem várias explicações, mas uma delas é
de nossa responsabilidade. Nosso modelo de consumo, nossos valores distorcidos,
nossos objetivos competitivos, exigem que a produção de bens seja excessiva, que os
gastos com recursos naturais sejam desequilibrados e, com isso, estamos acelerando
e aumentando os impactos de uma vida sem água, sem ar, sem terra. Não é exagero
dizer que, muito em breve, nossos gastos ambientais serão irreparáveis, não terão
mais volta.
Mesmo diante do privilégio com relação ao acesso à água, sei da minha
responsabilidade em tentar mudar esse cenário de escassez. Sei, também, que
precisamos resgatar a simplicidade, valorizar o natural, lutar pelo ar puro e pela
preservação da terra. A mudança depende de cada um de nós. E se cada gota conta
no oceano, cada ação que realizamos, cada influência que somos capazes de fazer,
cada mudança de hábito, também contam. Será que os 2 milhões de litros de água que
consumimos até os 40 anos são, realmente, necessários? O que poderia ter sido
evitado? O que cada um de nós pode repensar?
Então minha amiga, te peço desculpas por, mesmo que indiretamente, eu diminua o
volume da sua água potável, da pressão do poço de abastecimento e prometo que,
mesmo não tendo em mãos a solução definitiva, sempre falarei de você e de tudo o
que está por detrás da sua rotina. A nascente do problema está também aqui e farei a
minha parte.
Luana Ferreira
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